quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Quando passava no Restelo lá estava ele. Louco? Não, só se for de solidão.

João nasceu no seio de uma família muito rica. Até aos dez anos, viveu num enorme palacete da Tomás Ribeiro, cobiçado mesmo pelo próprio Gulbenkian. «Que saudades tenho desse tempo... A casa estava sempre cheia de família e amigos...».



Mimado desde bebé, fez a instrução primária toda em casa, com um professor particular, pois no primeiro dia de aulas no Colégio Parisiense chorou tanto que os pais não tiveram coragem de o mandar de volta. «Fui criado numa redoma de vidro», confessa, explicando: «Naquela época era tudo muito diferente, havia muitos tabus.». Depois do divórcio dos seus progenitores, quando tinha 13 anos, João foi morar para o Restelo com o pai. Por ele, inscreveu-se em Direito, mas depressa desistiu, «era muito chato».



Depois de uma igualmente curta passagem pelo curso de Histórico-Filosóficas, o pai, «que não sabia que fazer» com ele, mandou-o para Londres com o irmão. «Foram três anos fantásticos. Tinha um grupo de amigos fabuloso, com quem viajei imenso. Teria lá ficado, se não fosse tão agarrado à família...». Sem quase pôr os pés nas aulas, regressou a Portugal e, depois da morte do pai, pouco tempo depois, foi morar com a mãe, de quem não se separou até ao último dia da sua vida. «Viajámos muito os dois. Todos os anos íamos a Paris e Madrid. Conheço a Europa inteira, excepto a Grécia...».



E o olhar perde-se num momento só dele, como se pensasse alto. Quando a mãe morreu, «ficou desasado». E talvez por isso esteja todas as noites a «comunicar».



Admite que o que faz «não é muito normal», mas não passa sem isso. É o remédio que lhe permite disfarçar a solidão que o consome e o faz olhar para o passado com arrependimento, por não ter ousado viver a sua vida em vez da dos outros.



«Ás vezes penso que foi tudo inútil...»

No baú dos sonhos perdidos, jaz o curso que não tirou, o trabalho que nunca fez, os filhos que não teve e, pior, o grande amor que nunca conheceu. «Sinto-me só. Incompleto. Como se algo estivesse a falhar.».



E assim lacrimeja quando vê um casal idoso de mãos dadas, ou quando dois rapazes, que diz «reconhecer do subconsciente», param o jipe para tirar uma fotografia com ele.



«Encontramos-nos no céu», repete, aludindo ao que um diplomata ucraniano lhe disse uma vez.



O homem do lixo atira-lhe o derradeiro aceno da noite.


Daqui  


João Serra 
1930 - 2010





2 comentários:

Anonymous disse...

A solidão tem destas coisas.
Um caso visível entre muitos anónimos.

Homem

Sofia disse...

Numa sociedade cada vez mais individualista tende a aumentar este tipo de estado que considero assustador, triste, que não mata mas consome lentamente.